sábado, 2 de junho de 2012

Dois minutos


Todos os dias ela acordava meio atordoada, talvez porque o sono só tivesse durado umas duas horas e a noite fosse longa demais para os que sofrem de insônia, e pode ser inconveniente e sincera como só uma criança consegue ser naturalmente. É, a noite é uma criança.
Naquela em especial, uma ligação mudou tudo. Nada de céu estrelado nem de lembranças boas ou ruins, só o passado, chamando ao som de “Eu sei” do incrível e denso e profundo Renato Russo.
Era ele, depois de tanto tempo, como ainda tinha aquele número? Em outros tempos não hesitaria em atender, teria sorrido ao ver o nome, a foto com aqueles olhos grandes, lindos por sinal, lindos como ele mesmo era por dentro, e por fora, apesar de estranho. Ele fazia questão de ser o ponto diferente entre os comuns, de um jeito discreto é verdade, mas sempre estranho, lindamente estranho. Agora não era mais um nome, nem uma foto, mas era um número que estava guardado na memória dela e chegou correndo  junto com a surpresa e com o piscar da luz daquele celular na sua mão.
E então, atender ou não?  A imaginação se colocou a postos e pronto, lá vai ela para o mais longe possível, viajando por todas as possibilidades de qual seria o motivo da ligação... Algo ruim? (a madrugada não é lá uma boa mensageira). Alguma notícia tão boa que não pudesse esperar pelo sol? Outra música precisando de um refrão? Uma ideia de presente para a mãe, ou para o melhor amigo? Uma viagem sem volta pra Londres? Podia ser qualquer coisa, podia ser engano. Engano, sim, enganou-se o destino, a vida, ele próprio agora.
Ninguém avisou a ele que ela havia passado muito tempo esperando ver aquele nome aparecer novamente por ali? Com uma voz rouca que era um misto de timidez e provocação. Era a voz da paixão, dele, dela. 
Pareceu  impossível atender. Já tinha doído uma vez apagar o nome a foto, tudo. E se doesse de novo, e não parasse nunca mais? E se não tivesse tudo certo como ela pensava estar? Era a condição "se" causando confusão, e como ela sabe fazer isso.
Mas uma coisa era fato ela não era mais a mesma, ele não devia ser também, seria  como atender ao chamado de um completo desconhecido. A coragem chegou enfim e na hora em que Renato dizia “Um dia pretendo tentar descobrir",  ela disse serena:
_ Alô
_ Oi, sou eu. Te acordei?
_ Oi, eu sei que é você. Não, estava acordada.
_ Tudo bem? Acabei de ler sua última carta. Ainda tenho insônia. Você também né? Deu saudade. Você não sente saudade?
_ Sinto, mas não adianta nada, ás vezes me tira o sono, me tira a paz. Mas é só, finalmente parou de machucar.
_ Eu ainda tenho aquela foto. Os bilhetes, e-mails, tudo.
_ Por que ligou?
_ Eu queria te encontrar.
_ Já me encontrou, até já me perdeu, se não se lembra.
_ Parece que sim. Vou desligar então, Desculpa. Adeus.
_ Adeus.
Dois minutos. O passado não durou mais que isso. Ficaram a insônia, e a certeza de que Renato não poderia ter dito outra coisa naquele momento, senão “Um dia pretendo tentar descobrir por que é mais forte que sabe mentir. Não quero lembrar que eu minto também.

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