quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Perfil

"A Náusea não me abandonou, e não creio que me abandone tão cedo; mas já não estou submetido a ela, já não se trata de uma doença, nem de um acesso passageiro: a Náusea sou eu.” Sartre

Já fui muitos. E cada um deles fui com gosto. Fui menino e menina. Quando inocente, fui o mais iluminado dos seres: abri todas as janelas do mundo e vi a luz entrar. Fui discípulo, não tive religião, desvendei com meus próprios pés um caminho sem volta. Respeitei o poder das circunstâncias e jamais fui surdo ao poder da minha voz. Mas calei-me. E calei a ti.Fui manhãs de domingo e fui ausente. Não coube no mundo.

Todos que fui fartaram-se da minha opinião, meus conselhos, minha fé em sentimentos que não existem. Foram sensíveis, pintores, atrizes, amáveis, fracos. Já acreditei no poder da palavra, na sua capacidade de cerzir e ferir, de aniquilar ou fazer nascer luz do chão. Cruel, a palavra dita não se extingue jamais e não há no mundo o que a pare.Palavras e pedras me sangram os ouvidos. Quando fui rei, criei você e encontrei a mim.

Já fui quase nada quando o nada me encontrou. Você, que docemente me separa da realidade, trouxe os agouros com os quais me deito. Não durmo o sono dos justos, mas o dos desesperados que à luz do dia vendam seus olhos e gritam ao mundo sua justiça. Já fui o mundo inteiro, fui apático, matei por amor. Já fui tudo o que tiveram pra mim e o que eu não tinha. Quando chorei, vi como era grande a vida e me perdi. 

(Sedutor, o tempo presente, ao abrir todas as portas do passado, deixa teu olhar sombrio e teu futuro em agonia.) 

Já fui esperança e solidão. Em segredo, fui o melhor de mim. Mas cortaram-se os laços. Sucumbi. Feliz aquele cujo o fardo é leve! Momentaneamente, serei cínico: conto uma história onde poréns e porquês são cuidadosamente substituídos por negação e esquecimento. Minto a mim, que já fui louco e não posso escutar. Minto a você, a quem nunca menti e a quem quiser ouvir também: levem meu cobertor e minhas lembranças, não quero sonhar.

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